Decisão inédita é considerada um marco na história jurídica do país
O Exército Brasileiro foi condenado pela Justiça Federal a pagar a quantia de R$ 60 mil para a estudante Marianna Lovely, natural de Barueri, como indenização por transfobia e violação de dados. A decisão da juíza Letícia Dea Banks Ferreira Lopes, da 1ª Vara da Justiça Federal de Barueri, onde a estudante morava, saiu no dia 6/4 e é inédita. Na sentença, a juíza responsabiliza o Exército por danos causados pelos agentes da corporação. Por ser uma ação contra as Forças Armadas, haverá recurso automático.
“A autora teve sua condição mais íntima exposta à maldade alheia, com amplo acesso ao seu endereço e telefone; tudo amplificado pela internet e pelos meios de divulgação de massa”
Juíza Leticia Dea Banks Ferreira Lopes na sentença
Na sentença proferida, a juíza ressalta: “É certo que cabe ao Estado conferir proteção às minorias, com regulamentação específica, apta a nortear e esclarecer a população sobre as diferenças. Mas, na ausência de um Estado eficaz, não se pode fechar os olhos às violações que ofendem um sentido primário de respeito ao próximo, de dignidade humana”.
A ação foi movida pela adolescente e suas advogadas Patrícia Gorisch e Ana Carolina Borges, em 2015. Em conversa com o Barueri na Rede, Patrícia, que também é presidente da Comissão de Direito Homoafetivo do Instituto Brasileiro de Direito da Família (Ibdfam), informa que a decisão é um marco na luta contra a transfobia. “Desde que entrei no Ibdfam, em 2007, era inimaginável a gente ter esse tipo de sentença. Os juízes eram todos fechados para essa questão, a sociedade sequer discutia isso e a gente nadava em mares revoltos”, afirma a advogada.
Apesar de comemorar a decisão, Patrícia aponta para a longa luta contra o preconceito. “Hoje eu não digo que a situação esteja mais tranquila, pois as pessoas continuam morrendo. Nos últimos relatórios da Human Rights Watch, ONU e Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil ainda é apontado como o país que mais mata pessoas LGBTI do mundo”, lamenta.
Contudo, a advogada ressalta que a sentença é um marco duplo por ser a favor de uma transexual e contra o Exército Brasileiro. “… a gente ter uma sentença dessas dá esperança… esperança que um dia essas pessoas, ao pagarem seus impostos, como elas pagam, tenham os mesmos direitos que qualquer outra pessoa”.
A importante decisão repercutiu nos tribunais a ponto de a TV Justiça convidar Patrícia e a juíza para participar de um programa. “Pela primeira vez a gente teve esse tipo de sentença, pela primeira vez o Exército se pronunciou. Eu ingressei com uma abertura de denúncia na Secretária de Direitos Humanos e o ministro da Defesa se pronunciou dizendo que o Exército e as Forças Armadas não eram transfóbicos”, declarou.
Marianna, que mora atualmente em Londres, falou ao BnR sobre a importância da decisão “Esta semana recebi a ótima notícia de que tinha ganhado o caso. Isso encheu meu peito de felicidade. Fui atrás dos meus direitos. Cumpri o meu papel, de estar lá, mesmo não me sentindo muito bem, não me sentindo encaixada naquele local, eu fui fazer meu papel de cidadã”, diz sobre ter ido cumprir as obrigações militares. “Então, fui fazer, também, meu papel de cidadã de ir atrás dos meus direitos”.
Sobre o resultado da ação, ela enfatiza que a causa é maior que a indenização. “Fico feliz, não pela indenização, foi legal, mas não se deve dar ênfase a ela, mas sim à causa. Eu espero que nunca mais aconteça isso com ninguém.”
Entenda o caso
Em 2015, Marianna foi à Junta de Serviço Militar em Quitaúna, Osasco, para buscar seu certificado de reservista. Ficou dentro das dependências das 7 horas às 7h30, onde foi tratada com educação e sem preconceitos, conforme descreve em sua página nas redes sociais.
No mesmo dia, a estudante começou a receber ligações estranhas em sua residência, caçoando dela por ser mulher transexual. Descobriu então, que fotos dela e de seu certificado de alistamento militar, com seus dados pessoais, haviam sido vazados e circulavam nas redes sociais.
A adolescente fora fotografada por militares quando estava na Junta de Serviço Militar e teve suas fotos e dados pessoais divulgados na internet. Ela passou a sofrer com assédio em sua residência e nas redes sociais. Ameaças de ódio, estupro e convites, sugerindo que ela fizesse programas sexuais, fizeram com que Marianna mudasse de cidade, indo para São Paulo e depois, Londres.
A autoria das fotos teria sido confirmada pelo tenente coronel John Davys Bezerra Dantas, que as atribuiu a dois militares, um cabo e possivelmente um major. Os fatos estariam sendo investigados em inquérito policial-militar, segundo os autos do processo.