O ator barueriense Marcello Airoldi nos presenteia com um texto reflexivo sobre as manifestações culturais e políticas da cidade onde ele deu seus primeiros passos na sétima arte
Há 24 anos, estreamos “Viúva, porém, honesta”, de Nelson Rodrigues, em Barueri. Era a primeira montagem teatral resultante da recém-constituída Escolinha de Artes da prefeitura. Antes de nós, houve o Grupo Tempo, primeira manifestação teatral organizada de que se tem notícia depois da emancipação da cidade.
Estreamos no auditório do Instituto Tecnológico de Barueri (ITB). Nessa época, os alicerces do Teatro Municipal já estavam prontos, mas ainda tomavam chuva. O prédio só seria inaugurado meses depois e nossa “viúva” não teve chance de pisar naquele palco. Nosso espetáculo representava, de certa forma, outro alicerce que estava se estruturando, base de algo que, diferente da imutabilidade de um prédio, se transforma continuamente: o teatro e sua cultura.
A ideia de teatro pra aquele elenco era embrionária, apenas um deles seguiu adiante na carreira de ator. Carreira curta. Tivemos duas baixas nesse time, afinal alguns ousam explorar prematuramente “a terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou”, emprestando a frase do célebre monólogo de Hamlet. Éramos todos amadores, amávamos o que fazíamos. Aqueles atores passaram a representar na vida papéis de policiais, professores, médicos, jornalistas. Teatro não é para atores, é para todos.
Federico Garcia Lorca, autor espanhol assassinado em 1936, dizia que “o texto teatral é um dos mais expressivos e úteis instrumentos para a construção de um país, barômetro que marca a sua grandeza e sua decadência”.
Por que falar disso num texto sobre o aniversário de 67 anos de Barueri? Ora, aniversários são carregados de alegrias e tristezas. São tristes porque sempre apontam para o final, anunciam envelhecimento, indesejado pela maioria. No entanto, a alegria é sua maior marca, vêm sempre cercados de muitas celebrações, festas, é o dia em que a ditadura das dietas é vencida sem grandes culpas, traz amadurecimento e, por assim dizer, mais experiência, sempre muito benquista.
Tradicionalmente, os aniversários carregam também a chance de reflexão, é um período de reavaliação da vida, das histórias, momento de balanço pessoal e familiar. Esses conceitos, direta ou indiretamente, estão relacionados a antigas tradições pagãs – velas acesas para os desejos serem levados aos deuses ou para proteger os pedidos dos espíritos malignos – ou cristãs, como a própria ideia do renascimento, ligada ao Cristo.
Independentemente da origem dessas tradições, tudo faz parte de um universo muito mais amplo. É possível dizer que isso tudo é cultural. Tendemos a relacionar cultura apenas às atividades artísticas como teatro, dança, música, artes plásticas, cinema etc. Sim, a arte é um dos pilares da cultura, mas também os costumes, o conhecimento, os valores intelectuais e morais, as práticas diárias de cada povo, de cada um de nós.
Em 30 de junho de 1980, pela Lei n° 375, a prefeitura municipal concedeu ao Grupo Tempo uma subvenção de CR$ 9.000,00 (nove mil cruzeiros). Imagino que esse valor não atendia a todas as necessidades de produção do grupo. Apenas imagino. As Escolinhas de Arte (nome infeliz para a dimensão do projeto) começaram em 1991. Em 2016 – 25 anos depois – a Secretaria de Cultura e Turismo dá um passo fundamental para a profissionalização dos artistas da cidade, que antes tinham de se locomover a São Paulo em busca de cursos técnicos na área artística. A Formação Inicial e Continuada (FIC), em parceria com a Fundação Instituto Educacional de Barueri (Fieb), certifica alunos de teatro, dança e mediação de leitura.
As ações na área de cultura têm de transcender os governos e objetivos partidários. As politicas culturais são essenciais ao desenvolvimento social, humano da população, não podem ser mero cumprimento de agenda, moeda de troca para eventos com caráter eleitoreiro. É uma questão sociológica muito séria. Politicas culturais são certeiras no desenvolvimento do espirito critico da população.
Mais do que rever politicas culturais é preciso rever a cultura da politica na cidade. O momento histórico é peculiar, as forças estão divididas e novos nomes começam a surgir na politica local. É essencial que toda a população, incluindo fortemente a classe artística, se una para debater os novos rumos da politica em Barueri, embalada pelos debates que tomaram conta do país. Novos rumos de verdade, democráticos e livres, caso contrário, o que sugere mudança rapidamente pode se transformar em velhos costumes de caras cansadas.
A “viúva” de Nelson marcou uma geração que melhorou por causa dela. O FIC é certamente um pilar fundamental para a continuidade do desenvolvimento da cultura de Barueri. Daquela montagem amadora ao curso profissionalizante de teatro há uma longa ponte que se constrói a cada dia. A beleza da arte habita o incompleto. Parar é entregar-se à morte.
A politica é parecida, é viva no plenário e nos bastidores, nas coxias. Torço pelo bem comum e pelo debate, características do teatro que deveriam estender-se para o universo da vida pública, mas infelizmente sabemos que na politica a “banda” não toca bem assim.