quinta-feira, novembro 21, 2024
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Sobre a dita “meritocracia”

por: Redação

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Siméia Mello analisa o sistema em que a maioria é excluída e somos criados para “dar errado”

Apaixonada por livros desde muito nova, aspira a escrita como forma de emancipação. Seu amor pelos livros a levou diretamente para a área da educação e em direção aos livros. Hoje, é revisora e professora e, sempre que possível, adora discutir sobre a vida e suas complexidades. Negra e mulher, há um bom tempo vem discutindo as inúmeras formas de opressão, buscando sempre modos de superação e emancipação. Tem uma relação muito próxima com a cidade de Barueri onde cresceu e partilhou infância e boa parte de sua vida adulta.
Apaixonada por livros desde muito nova, aspira a escrita como forma de emancipação. Seu amor pelos livros a levou diretamente para a área da educação e em direção aos livros. Hoje, é revisora e professora e, sempre que possível, adora discutir sobre a vida e suas complexidades. Negra e mulher, há um bom tempo vem discutindo as inúmeras formas de opressão, buscando sempre modos de superação e emancipação. Tem uma relação muito próxima com a cidade de Barueri onde cresceu e partilhou infância e boa parte de sua vida adulta.

Desde criança, tenho mania de observar pessoas. Apesar de sempre ter sido uma criança muito expressiva – alguns diriam, expressiva demais –, adorava participar da roda dos adultos em silêncio, algumas vezes escondida, ouvindo as conversas, vendo o mundo pelos olhos deles e, assim, montando meu quebra-cabeça aqui dentro de mim.

Hoje, apesar de ainda bastante expressiva – alguns dirão, expressiva demais, eu sei –, adoro observar a vida, as pessoas, o mundo e ir tirando pequenos pedaços de seus mundos para reconstruir ou pensar o meu, o deles, o nosso. Afinal, ninguém é uma ilha e conhecimento, só é possível no compartilhamento. Quando acessamos algo no outro que encaixa com o que temos aqui e, juntos, formamos a velha colcha de retalho que, só na junção, é possível ver o todo. Já os pedaços, fragmentos, informações soltas, desconexas, servem mesmo para pendurar diplomas emoldurados em paredes vazias de vida, de contexto, de empatia, do Outro. É um lugar solitário; lugar que só um pode acessar; hierarquizado; cheio de regras e normas para impedir mesmo quem está fora de entrar; é o lugar do silenciamento; da autorização; da legitimação do discurso.

Daí que nessas minhas observações, percebo que vivemos em um mundo muito fake. Um grupo, um único grupo, decidiu o que era belo, o que era arte, conhecimento, felicidade, ser humano e bicho, enfim, o que era ser e nos enfiou goela abaixo por meio de tantas formas – religião, ciência, mídia, Estado repressor e desigual –, transformando-nos não só em oprimidos desse sistema, desse jugo, mas propagadores, disseminadores desses padrões que simplesmente não nos cabem.

Sofremos as agruras diárias por não cabermos nessas caixas feitas exatamente para não cabermos; muitos morreram, outros ainda morrem e quantos ainda morrerão numa tentativa absurda de alcançar pequenos e míseros privilégios distribuídos aqui e acolá. Privilégios estes concedidos a poucos por meio de critérios bastante questionáveis, dando-nos a ideia falsa de que precisamos desse seleto grupo para nos legitimar, legitimar nossa fala, nossa vida, nosso estar no mundo.

Nos dizem o que precisamos ter, como precisamos ser, adestram-nos e nós, presos por essas ideias vindas de cima, autoritárias e subjugadoras, aceitamos, legitimamos e ensinamos nossas crianças, propagando aos que vêm depois de nós da mesma forma que nos foram passadas por nossos pais.

O que é ser alguém, pergunto a vocês? Quem decidiu que existe uma vida que vale a pena ser vivida, seguida, nutrida e valorizada? Quem são essas pessoas que nos mantêm em silêncio? Que nos tiram a terra? Nos tiram a vida e que, quando gritamos, fingem não nos ouvir, nos olham de cima como se não fossemos gente; que nos ensinam também a olharmos os que estão embaixo de nós da mesma forma que nos olham, com desdém? Quem são esses que nos dizem que gritar de dor é coisa de fraco, de perdedor?

E daí aceitamos o jogo sem ao menos entendê-lo, sem ao menos termos todas as regras nas mãos, seguindo a massa. Acordamos, enfrentamos ventos e tempestades para acessarmos pequenos espaços negados a nós deliberadamente, nos enchemos de coragem, acreditando que se nos esforçarmos mais do que nossos corpos subnutridos de alimento, de incentivo, de afeto podem aguentar; se carregarmos o peso que nos foi dado calados, servis mesmo quando nossos braços e pernas não suportam mais carregar, seremos recompensados com migalhas aqui, uns trocados acolá enquanto eles, os donos do jogo, lucram com as nossas perdas, com os nossos ganhos, com as nossas vidas.

Sim, eu estou falando, dentre tantas coisas, da ideia de meritocracia. O conceito de mérito que só vejo sendo usado quando é para nos impedir de entrar nos lugares feitos por eles e para eles.

Uma sociedade marcada por um processo escravagista em que a vida de milhares de pessoas foram usadas como instrumentos para aquisição de riqueza de um mísero grupo que, ainda hoje, seja pelo Estado, pela mídia, pelo capital acumulado em cima de tantos corpos, não só vive dessa renda, mas se alimenta como urubus dos restos de milhares de brasileiros mortos em filas de hospitais superlotados, em moradias sem a mínima condição de vida, em trabalhos degradantes e estafantes, em tentativas frustradas de sentar-se à mesa para, depois de tudo isso, ainda nos fazer acreditar que só não temos, só não somos porque somos preguiçosos demais, incapazes demais, ignorantes demais, analfabetos demais, desinformados demais, parvos demais, selvagens demais, feios demais…

Mas este texto não é só uma denúncia a esse sistema “meritocático”, e sim um chamamento a todos, excluídos de inúmeras formas desse modelo de vida apregoado a nós de tantas maneiras, que se levantem, que gritem suas dores, seus medos, seus anseios, que se indignem com esse sistema feito para darmos “errado”.

Essa vida não é nossa, amigos! É deles! Portanto, eles que a vivam, mas não mais sobre nossos ombros, sobre nossos corpos, nossos sonhos!

E que se dane a meritocracia e tudo o que ela representa!

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