Em texto nostálgico, Ingrid Teixeira analisa sua percepção da cidade ao longo de sua vida
Me lembro de quando era uma criança de uns seis anos, perguntei a minha mãe de que lugar éramos e ela respondeu “somos daqui mesmo, sua avó é daqui, eu, seus tios”. Mas ela não tinha entendido minha pergunta, é que eu queria saber aonde era o aqui dela.
E meu mundo naquela época era pequeno como eu era, minha avó que morava na rua de trás, meus amigos que moravam nas ruas ao redor e a casa ao lado com uma pitangueira que era minha alegria todo outubro. Meu “aqui” era um bairro de 21 ruas, que eu gastava o asfalto ralando bicicletas e joelhos.
Minha avó se referia sempre a outro lugar a que chamava de Cidade. Na escola eu havia aprendido que eu já morava em uma cidade, e toda vez que minha vó falava que precisava ir na cidade comprar tecido, eu não entendia nada.
Com uns oito anos, eu já sabia onde morava, o nome do município que era escrito todo dia na lousa, o prefeito que de quatro em quatro anos aparecia de verdade, não só nos quadros dentro da secretaria da escola. Sabia meu país, sabia sobre São Paulo e tinha verdadeira curiosidade sobre tudo. Para mim naquela época, se havia Rio Tietê então só poderia ser São Paulo. Eu só tinha de achar o Rio Pinheiros. Mas só depois que aprendi que São Paulo era estado e cidade também, e que eu só poderia me referir à moradora de São Paulo no que se diz respeito ao estado.
Então com uns 10 anos, eu comecei a explorar minha cidade. Os vários córregos que nos corta. Seus limites. A principal rodovia, que lá da minha casa eu conseguia ouvir um barulho constante que vinha dela no horizonte. As quatro estações de trem, com uns trens que naquela época eram velhos, caindo aos pedaços. O nome dos bairros. O formato do mapa, que lembrava uma pomba.
O Tietê nojentão. Mas me dava certa paz sentar frente a ele e ver a água passar nos fins de tarde da minha infanta lembrança. Ou então as bonitas alamedas com cheiro forte do eucalipto que as cercavam. Toda a artificialidade de certos bairros, todo o improviso de outros. Tudo isso me encantava, mesmo sem ser um exemplo de arquitetura ou paisagem.
Minha cidade nunca teve nada que chamasse atenção. Era pequena, apesar de rica. Poucos moradores, uma cara de interior em 70% de todo seu espaço. Todo mundo conhecia todo mundo. Meu avô tinha um bar naquele bairro de 21 ruas, no começo da década passada era muito conhecido.
Eu gostava dessa sensação de sempre ter alguém que te conhece quando você sai as ruas. Minha mãe odiava isso.
Chamavam também minha cidade de Km 25, se referindo a distancia marcada na saída para minha cidade na tal rodovia que nos atravessava. E geralmente era acompanhado da frase “mas é muito longe!”. Longe para quem, afinal? Porque para mim, minha vida toda era ali. Meus amores, meus amigos, minha família. Minhas lembranças diárias atreladas a musicas e cheiros, todos tem a ver com minha cidade.
Só que aí… eu queria fazer faculdade, na minha cidade não tinha. Para ir até São Paulo eram 45 minutos de trem, e isso todo dia para ir e voltar cansava tanto.
Queria lugares descolados, dançar… Conhecer gente nova na minha cidade até hoje me parece um desafio. Em plena adolescência, minha cidade passou a ser tudo o que não queria ter em uma cidade.
Minha rua não tinha internet, só por sinal de rádio. Meu pequeno bairro de ruas limitadas só tinha uma lan house. A energia elétrica era frágil e sempre acabava quando chovia. Eu me sentia tão presa naquele lugar! Era como se eu quisesse me expandir, como uma esponja pronta para absorver tudo o que a rua tinha para me oferecer, mas as ruas da minha cidade não tinham mais nada, só seus ônibus ruins e velhos, seus próprios moradores moralistas e chatos, pinguços do bar do meu avô, velhas que bordavam na praça, gente que puxava conversa na fila do caixa do banco…
Conheci depois todos os bairros da cidade, sendo através de amigos, mudanças de residência, ou apenas andanças aleatórias. E ainda era pouco.
Então, fosse pela necessidade de trabalho, estudo ou lazer, eu acabei de me apaixonando pela cidade de São Paulo, cujas opções nunca se esgotavam. Eu podia ser qualquer pessoa lá, e quando voltasse para casa, continuar sendo a pessoa que todos conheciam na rua.
E durante anos fui bem ingrata com minha cidade, jamais a considerando um lar mesmo morando nela por toda a vida. Sempre me referindo a ela como um lugar atrasado, velho e cheio de falso-moralismos. Enquanto minha cidade era a sempre a mesma, charmosa, com os melhores pores do sol.
Quando minha meia vida em São Paulo começou a desmoronar, fui me consolar no charme de minha cidade, nos braços de minha família. Como se a cidade toda fosse minha família, minha casa. Cada pedaço de chão, árvore, nuvem que passa, prédio que é construído, gente que converso na fila, cada detalhe da minha cidade, pequena, velha, atrasada, cheia de flores vermelhas, com seus diversos córregos, periferias, condomínios, comercio, ônibus velhos, estações em frangalhos, pessoas que conheço ou não, fazem parte da minha história.
Talvez agora seja o devido momento de a considerar meu lar.