Ingrid Teixeira reflete neste conto sobre direitos que estão morrendo e as modernas (mas nem tanto) formas de escravidão
A Quitanda do Seu Sorriso era um estabelecimento pequeno mas, devido à construção de um grande condomínio residencial naquele bairro, Seu Sorriso e seu filho não estavam dando conta de cuidar do negócio sozinhos. A solução era contratar mais um funcionário, alguém que pudesse fazer entrega dos alimentos direto ao cliente. Mas os gastos que teriam com um novo funcionário eram altos para seus investimentos, e tinham outras prioridades, como trocar a perua que fazia o transporte das verduras do Ceasa para o Jardim Tupanci.
Então, enquanto conversava com seu amigo João, que agora estava trabalhando como motorista do Uber, ouviu sobre a forma autônoma em que se dava o vínculo empregatício.
João lhe disse que ele mesmo podia fazer seu horário e local de trabalho. E que tinha outros motoristas que estavam trabalhando até 14 horas por dia para conseguir tirar um faturamento maior. A empresa não tinha algumas preocupações como, por exemplo, registrar o funcionário, pagar determinadas contribuições e impostos, se responsabilizar no trajeto, segurança do motorista e nem em não ultrapassar as famigeradas 8 horas de trabalho por dia, conforme as leis trabalhistas vigentes no Brasil.
Seu Sorriso teve a ideia de então contratar um jovem ali da rua, que havia lhe pedido para preencher a vaga, num modelo novo inspirado no Uber. Como a procura por trabalho era grande e o desemprego ia às tantas, o jovem logo aceitou as estranhas condições de trabalho do Seu Sorriso, e no primeiro dia já iniciou bem cedo, sabendo que teria um longo dia de trabalho caso quisesse fazer seu faturamento render.
Em pouco tempo o jovem, que se chamava Thiago, estava trabalhando 12, 13 horas por dia entregando verduras e frutas na casa das pessoas, e conseguia tirar um salário mensal satisfatório. Trabalhando na informalidade com Seu Sorriso ele tinha suas vantagens como, por exemplo, poder ficar em casa durante a semana caso tivesse algum problema para resolver. Ele fazia seu horário e podia escolher como e quem atenderia, além de ter entrado nessa empreitada com seu próprio veículo, no caso uma moto YBR bem velha que comprara ainda adolescente, o que o isentava das responsabilidades de usar um veículo da quitanda.
Quase um ano depois, Thiago quebrou a perna num acidente de moto enquanto trabalhava, sem poder acionar nenhum tipo de direito (como INSS) e este foi só o começo das desvantagens. Um outro jovem foi contratado durante os seis meses em que ficou afastado, e quando Thiago voltou, Seu Sorriso não o dispensou, o que dividiu a clientela que Thiago costumava atender, e diminuiu seu ganho. Em detrimento disso, o outro rapaz que agora era seu colega de trabalho e se chamava Bruno, passou a fazer uma jornada de 15 horas diárias, e dormia nos fundos da quitanda numa cama improvisada.
Sentindo-se forçado a trabalhar também 15 horas para atender sua necessidade pessoal de faturamento mensal, Thiago iniciou um período de trabalho que não tinha começo nem fim. Vivia para trabalhar e trabalhava para comer. Algum tempo depois, Bruno se dizia cansado e deixou de trabalhar na Quitanda. Mas Seu Sorriso, que ia muito bem financeiramente, uma vez que os lucros da empresa quadruplicaram com o novo modelo empregatício que vinha desenvolvendo, inspirado no Uber, não quis passar as demandas de Bruno a Thiago, e contratou mais dois rapazes no mesmo perfil, com suas próprias motos, seus horários e muita vontade de trabalhar, o que estimulava cada vez mais o crescimento da Quitanda, possibilitando até a abertura de duas filiais, uma no Jardim Esperança e uma no Jardim dos Camargos. É claro que a construção de outros megacondomínios residenciais também foi um fator fundamental no crescimento da Quitanda do Seu Sorriso.
E então, algo que Seu Sorriso não imaginava aconteceu: alguém abriu outra quitanda na mesma rua que não cobrava entrega e ainda oferecia verduras e legumes pela metade de seu preço. Como conseguiam, Seu Sorriso jamais saberia. Em menos de um ano, Seu Sorriso fechou as filiais, mandou embora todos os rapazes que entregavam verduras e o movimento caiu para um terço do que era antes da abertura da concorrente.
Logo, Seu Sorriso teve que fechar as portas. E acabou sendo contratado por uma vidraçaria que, inspirado nele, não tinha um vínculo empregatício baseado na CLT. Seu filho, que trabalhava na quitanda com ele, foi trabalhar de balconista na farmácia ali perto, e também estava contratado nos mesmos moldes, trabalhando ambos cerca de 14 horas por dia para tirar um salário razoável. E então Seu Sorriso notou que embora ele tenha tido uma boa intenção, o que ele fez com seus funcionários nada mais era do que uma forma moderna de escravidão. Uma escravidão travestida de modernidade.
*todos os elementos citados neste conto são fictícios e não têm qualquer referência com a vida real