André do Valle faz um exercício de empatia para nos mostrar como é ser uma mulher em uma sociedade machista
Olhou pela última vez na noite o feed do Facebook. Um post daquela sua amiga insuportavelmente feminista causou-lhe tanto incômodo, que quase jogou o celular pela janela, pra não ceder à tentação de esculachar nos comentários.
Foi deitar com a cabeça fervendo, falando alto embora estivesse só.
– Onde já se viu?! Como se mulheres e homens já não gozassem dos mesmos direitos! Isso aí pra mim é falta de… – E adormeceu.
Sonhou que conversava entre colegas sobre ter uma criança.
– Ah…! Se for uma menina, eu vou fazer questão de ensinar tudo pra ela! Como pescar os garotinhos na escola; como cantar um rapaz na rua; sabe, o jogo da sedução? Então, é só ser criada comigo, que vai ser a rainha da Coitolândia!
Bebidas, gargalhadas, música de festa ao fundo e outra pessoa lhe pergunta:
– Mas e se nascer um guri?
– Opa, aí cê sabe como é, né? Só vou deixar sair de casa aos dezoito anos… Magina, filho meu não sai por aí se esfregando em qualquer rapariga não…
– Poxa, mas você não acha que isso é feminismo? – Questiona alguém.
– De jeito nenhum! Porque olha só: se uma taça recebe uma garrafa, qualquer tipo de garrafa, e a garrafa a enche com o seu líquido, a taça só tá cumprindo a função dela. Agora, uma boa garrafa, de uma bebida que tenha qualidade, não vai sair por aí despejando o que ela tem de mais precioso em qualquer caneca.
De repente a porta se abriu e um moço dos seus vinte anos entrou tremendo feito uma máquina de lavar desnivelada. O buzuzum foi geral. “Calma” daqui, “pega uma cadeira pra ele” dali, chazinho, água… Até que o coitado, cobrindo a cara de vergonha, começou a falar.
– Hoje eu não quis sair de casa vestindo cueca, porque tá muito calor e eu tô com a virilha assada. Daí, quando eu tava a duas ruas daqui, passou um carro cheio de mulheres e elas ficaram reparando no tamanho da marca na minha calça. Ficaram comparando com outros de pessoas famosas, diminuíram a velocidade e o que eu ouvi de insultos e palavrões não tá escrito, gente!!! – E pôs-se a chorar.
– Mas elas tocaram em você?! – Perguntou uma mulher muito curiosa.
– Não. Elas não, mas aí vinha uma outra moça passando e quando ela ganhou o que tava acontecendo comigo, ela passou a vagina em mim e deixou até uma marca na minha calça! – E voltou a soltar lágrimas.
As mulheres da festa começaram a afagá-lo, no princípio de modo carinhoso, mas depois… Tocaram-lhe em todas as suas células. Riam, esfregavam-se nele… Até que seu pai, praticamente arrombando a porta, adentrou aos brados.
– O que significa isso???!!! Larguem o meu filho, suas…
– Opa…! Peraí, senhor! O seu garotinho entrou aqui sem cuecas, contando sobre uma aventura sexual que acabou de viver e deixando todas nós passarmos as mãos nele, darmos beijinhos…
– É! Isso mesmo! O seu filhinho não é nenhum santo não, tá, senhor?!
O pai, percebendo os trajes do rapaz e constatando que realmente ele não usava cuecas, arrancou-o dali aos safanões, dizendo que o iria castigar, trancando-o em casa e só permitindo que saísse para a escola. Durante todo o resto do tempo, teria de cuidar da casa, estudar e voltar para a igreja.
E como os sonhos costumam seguir uma lógica muito própria, o ambiente agora era o seu trabalho. Viu passar a gerenta, que acenou para um secretário que estava ao seu lado. O sujeito levantou e se foi com a mulher. No mesmo instante uma orquestra de fofocas.
– Mas é muito descaramento, né? – Sim, eu também acho! – Magina, depois ele tem coragem de falar que não aguenta mais, que ela faz chantagem… – Ih, isso aí é lorota… Cê acha que se o cara não gostasse ia funcionar?
Agora já estava em casa. Era criança e ouvia o pai brigar com um casal de irmãos.
– Eu já falei pra você, Bruno, a sua irmã é mulher! Ela tem que cuidar de coisas que você não dá conta! Então vai lavar essa louça, limpar a casa, passar pano e vê se arruma a cama da sua irmã direito!
Foi aí que o despertador anunciou que já era manhã.
Desligou o alarme, abriu o Facebook, curtiu e compartilhou a postagem feminista.
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