quinta-feira, novembro 21, 2024
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Sobre úteros e vaca

por: Redação

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Com bom humor e uma dose de sarcasmo, Nana Pequini fala sobre ser mulher

Nana Pequini, é formada em História pela FFLCH-USP e em Arte Dramática pela EAD- ECA- USP. Foi professora de teatro das Oficinas Culturais de Barueri e diretora do Teatro Municipal. É dona de um vocabulário de 603 palavrões que utiliza no dia-a-dia. “Não sou de briga , mas não amenizo!”, sustenta.
Nana Pequini, é formada em História pela FFLCH-USP e em Arte Dramática pela EAD- ECA- USP. Foi professora de teatro das Oficinas Culturais de Barueri e diretora do Teatro Municipal. É dona de um vocabulário de 603 palavrões que utiliza no dia-a-dia. “Não sou de briga , mas não amenizo!”, sustenta.

Sou uma Vaca! Assumidamente Vaca! Com letra maiúscula! E tenho orgulho disso!
Descobri isso graças às redes sociais. Minhas ações e pensamentos não combinam com o que desenham como sendo uma “boa mulher”. Lendo postagens, vendo vídeos tenho asco até de gente que me rodeia! E como tentar amá-los? Como respeitá-los se eles já vem com o julgamento prontinho e sentença já decretada? Tempos difíceis …

Ela acordou mugindo! Simples assim… Nada mais saía de sua boca além de um muuuuuuu contínuo.
Acordou como todos os dias as 5 e meia. Marido já no banho para ir ao escritório. Filho no quarto ao lado. Ela se levantou. Desligou o despertador do celular. Ligou a TV no jornal. Tudo na organização de sua rotina de minutos contados e sem açúcar. Gatos no corredor. Quando foi acordar o filho ela disse : – Acorda, filhão! Hora de ir para a escola. Mas, o que saiu de sua boca foi um muuuuuuu! Muuuuuu.
O filho acordou sobressaltado, tinha ouvido uma vaca. Ela não entendeu. Calou. Ele olhou pra ela em silêncio. Ela com os olhos estalados tentou falar algo, uma letra, um a . E veio um mu. O filho começou a rir. Ainda estupefata começou a rir meio sem jeito, com a mão na boca. Fingiu normalidade. Sorriu. E fugiu para o banheiro. Ao abrir a porta o marido já estava passando o gel no cabelo. Ao olhar para ela notou a expressão de terror.

– O que houve?
– Muuuuuuu
– Que? Fala direito!

Ela não conseguia. O pensamento era elaborado com o uso do alfabeto inteiro, mas ao tornar a ideia som, ela mugia.

– Que brincadeira é essa? Fala direito! Que porra!

Ela mugiu desesperada. Foi até o criado mudo. Ele a acompanhou entre o atônito e o raivoso . Achou um bloquinho. Achou a caneta ao lado do telefone. E escreveu grande em letras garrafais.

– Não sei. Estou mugindo!

Ele olhou pra ela com o mesmo olhar perdido de quando o moleque caiu.

– Não estou te entendendo!!!
– Acordei mugindo. Tô tentando falar, mas só faço muuu!
– Você está de palhaçada!
– Pelo amor de Deus! Não!
– Vai ver é algo neurológico. Vai no médico!
– Será?

O filho no café achou divertido a mãe mugindo! O marido ligou para o serviço da esposa e avisou que ela não estava bem. Estava vomitando, teria que faltar e ir ao médico.

Ele foi trabalhar, levou o filho para a escola. Ela ficou. A cabeça trabalhava como louca tentando encontrar o porquê , a razão, o que era. Um problema neural? Seria o mais provável. No banho, ela começou a fazer teste. Pensava em uma palavra e mugia a palavra. Tentava ver se mugia letras. Notou que era um “u” além da palavra pensada. Tomate era Muuuuuu. Amor era Muuuu. Caralho era Muuuuuuu.
Deusseufilhodaputaquefezissocomigo era Muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.

Começou a mugir músicas. Gostou. Mugiu um repertório inteiro de Disco e Bossa Nova.

Deitou e voltou a pensar o porquê.

Seus erros! Eles determinaram que ela era uma vaca! O aborto na adolescência, as traições aos namorados e aquela única vez ao marido, a vez que roubou creme de cabelo na loja por pura curiosidade. A inveja da magreza das amigas, do marido da amiga, do filho , da casa, do cabelo, do peito, do brinco!
Chorou mugindo. Os soluços eram mugidinhos apertados. Por 3 horas seguidas chorou.
Dormiu cansada.

Sonhou. Ela era uma vaca! Agora inteira. Pastava feliz, rápida. Corria. E no sonho ela falava. Língua de humanos. Ela, vaca de quatro patas, subiu em uma árvore. Longe avistou um rebanho. Desceu e gritava para que as outras a esperassem. Lá, ouviu conselhos. Uma vaca mais velha veio ter com ela.

– Querida, somos muitas!
– Existem mais?
– Muitas ! Milhares…
– Mas, porque?
– Somos vacas!
– Porque?
– Transgredimos. Éramos carne quando mulheres. Tratadas como carne e posse. Agora somos vacas.

Acordou. O telefone tocava.

– Alô?

Ela falou! Tinha passado! Será que havia sonhado?
Era a mãe dela avisando do aniversário da prima no interior. Ela falou normalmente, mas com um sorriso que lhe atravessava a cara. A alma estava mexida.
Ligou para o marido avisou que falava. Ele ficou aliviado.

Feliz ela voltou a aproveitar o seu dia. Seria um dia de folga! Foi ao supermercado. As pessoas estavam sempre olhando para ela. Estranho. Começou a se incomodar com aqueles olhares. Ao entrar no carro, abaixou o espelho da frente. Seus olhos! Iris enormes! Estavam translúcidos, quase sem expressão. Parados. Olhos de vaca!

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