sexta-feira, março 29, 2024
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Quem castrou Caio?

por: Redação

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Jay Rocker toca na ferida que nasce destes tempos em que as pessoas vão transformando seus prazeres em formas de obrigações cotidianas

Formado em Comunicação Social, Publicidade e Propaganda, baterista da banda Vozes Incômodas, autor dos livros "Poesia das Ruas" e "Anarquismo: Uma questão de ordem, respeito e solidariedade", escrivinhador no site Interferência Urbana, ataca de poeteiro e contador de causos no site "Recanto das Letras", reside em algum lugar além do arco-íris, não está na moda, não bebe, não fuma, não cheira, não dança, não joga e não namora em pé.
Formado em Comunicação Social, Publicidade e Propaganda, baterista da banda Vozes Incômodas, autor dos livros “Poesia das Ruas” e “Anarquismo: Uma questão de ordem, respeito e solidariedade”, escrivinhador no site Interferência Urbana, ataca de poeteiro e contador de causos no site “Recanto das Letras”, reside em algum lugar além do arco-íris, não está na moda, não bebe, não fuma, não cheira, não dança, não joga e não namora em pé.

A sala estava escura, mas dava para perceber as horas naquele velho relógio digital.

11:58 p.m. Se seus parcos conhecimentos em inglês estivessem certos, faltavam dois minutos para a meia-noite. Ele riu, se lembrou de uma canção que ele gostava na adolescência.

O riso deu lugar à dúvida. Onde ele estava? Bom, pelo menos o corpo não doía. A cabeça sim. Muita dor, que foi aumentando cada vez mais. Olhou ao seu lado e viu um monitor cardíaco. O cheiro do lugar invadia suas narinas e ele então se deu conta que estava numa espécie de quarto de hospital.

Sim, era um quarto de hospital, e Caio percebeu que estava imobilizado. Sua cabeça continuava doendo. O problema é que a dor não era física, mas uma dor entranha, principalmente por perceber que ali estava ele, castrado.

Como ele chegou nesse estado? Como e quando ele foi castrado? Teria sido de uma vez? Teria sido aos poucos? Seria reversível?

Começou a lembrar de suas castrações. Aos poucos percebeu que ele era cada vez mais castrado e não percebia.

O início foi de forma simples. Primeiro castrou seu prazer de almoçar. Há quanto tempo ele não almoçava mais? Houvera trocado seu almoço por comer. Sim, ele apenas comia. Nem se lembrava de quando tinha almoçado pela última vez.

Em cada reunião, cada dia de trabalho, a correria diária…vou comer. Vou ali comer um negócio. Tenho 5 minutos, dá tempo de comer algo. Almoçar? Nem em casa mais.

Percebeu ainda que havia castrado seu prazer de um bom banho. Ele não mais tomava banho. Se lavava apenas. Banho rápido, 3 minutos, molha, enxágua, molha de novo. Temos que economizar água, tem uma crise hídrica se espalhando. Qual a última vez daquele banho gostoso e relaxante? Não se lembrava.

Mas pelo menos ele ainda transava. Quer dizer, rapidinhas de 5 minutos, sem preliminares, sem nada. Colocou, gozou, tirou, beleza. Obrigação marital cumprida. Aquela noite de luxúria ardente, onde corpos e fluídos realmente se misturavam tinha sumido.

Castrou sua diversão com os amigos. Trocou as comemorações pelos parabéns em redes sociais. Não telefonava mais. Tem aplicativo para isso, mando uma mensagem coletiva… Sim, sem perceber, até isso estava sendo castrado dele.

E seus filhos? É, a última coisa que ele lembra de ter dito foi: “Depois o papai olha” e se lembrou que não olhou o desenho que o garoto trouxe da escola, feito especialmente para o seu herói. Por quê? Estava ocupado checando as mensagens no celular.

Sim, Caio estava castrado. Numa cama, pensando em como tinha deixado chegar a esse ponto e agora lá estava ele. Quem garantia que ele não estava morto ou morrendo? Dúvidas no ar, talvez se ele se levantar… ou tentar.

Ok. Conseguiu. A luz acende e uma enfermeira o saúda.

– Olá, senhor Caio. É um prazer vê-lo bem. Como se sente?

– Estranho. – Responde ele – Como vim parar aqui?

– Bem – disse Samantha, a enfermeira – Tudo que sei foi que o senhor teve um surto no trabalho. Nada grave, stress. Mas recebeu uns medicamentos e amanhã está liberado. Olha, se o senhor me permite, precisa puxar um pouco mais o freio.

– Verdade. Preciso – Responde Caio, que se deixa cair na cama, tenta dormir e decide que é hora de não mais se privar. Não mais se castrar.

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